ENTREVISTAS

O HOMEM QUE AMAVA INTENSAMENTE

Esta entrevista é uma compilação das muitas conversações mantidas ao longo de 15 anos entre o educador brasileiro Paulo Freire e o professor Carlos Alberto Torres.

 

 

Carlos Alberto Torres – Existe um concenso entre os biógrafos e estudiosos de seu trabalho de que foram suas primeiras experiências com treinamento em alfabetização, particularmente, a experiência em Sergipe, Rio Grande do Norte, em 1963, que projetaram seu nome e parrticularmente seu projeto epistemológico e pedagógico no mundo. Nesta conversa, contudo, é seu trabalho como pesquisador e professor universitário que nos interessa. Sua agenda de pesquisa tem estado intimamente relacionada com Pedagogia do Oprimido. Vocë poderia nos dizer como decidiu escrever aquele livro tão fecundo, com que propósitos e como o mesmo foi concebido?
Paulo Freire – Bem, no Chile, eu comecei a criar um hábito que não tinha até então – isto é, o de sempre carregar em minha pasta um caderno com folhas em branco. Sempre que tinha uma idéia – seja lá qual fosse, pois tratava-se de algo que explodia em minha cabeça repentinamente na rua – eu parava na esquina, abria minha pasta e tirava de lá uma folha de papel e escrevia o que estava pensando. Quando chegava em casa à noite, depois do jantar, eu ia para meu escritório e lá tirava os pedaços de papel da pasta, relia-os, inspirava-me e então escrevia.
Torres – Todas as noites?
Freire – Todas as noites. Contudo, havia noites em que eu não escrevia nada. Mesmo assim, com muita paciência – eu sou muito paciente comigo mesmo – eu por vezes passava três horas na biblioteca sem escrever um única palavra e sem me zangar comigo mesmo. No dia seguinte escrevia. Às vezes escrevia oito páginas baseadas na idéia que eu havia anotado na rua naquela manhã. Depois, colocava tudo em pequenas fichas com títulos e as arquivava. Todas elas geralmente giravam em torno de um único tema. O tema que me preocupava mais naquela época era o problema dos oprimidos e seus opressores.
Torres – E por que esse tema? Como nasceu esse tema?
Freire – Esse tema nasceu em mim com a recordação de minha própria relação com os oprimidos do Brasil e com a diferença que descobri com a história cultural da sociedade chilena. Quanto mais eu me aprofundava no mundo do componês chileno, quanto mais eu ouvia os camponeses falarem, mais clara ficava para mim a relação de opressor e oprimido, de consciência opressora e consciência oprimida... e isso, constituía-se num objeto de curiosidade para mim. E então veio esse dia em que passei a acreditar que tinha que escrever o que me ocorria, mesmo como uma tentativa de fazer uma contribuição para aqueles que trabalham nesse campo. E também foi dessa forma que eu tive a idéia para o título. Pedagogia do Oprimido foi uma tentativa de compreender essa relação. E quando ele foi publicado, muitas pessoas, mais esquerdistas do que de esquerda, criticaram o livro dizendo que eu falava e usava conceitos muito vagos, tais como a noção de opressão. Aí eu peguei o livro e o li para contar quantas vezes eu havia falado de classe social. Você verá que eu falei de classe social 33 vezes no livro. O que é que eles queriam? Eu acho que a crítica já estava vindo de uma posição um tanto sectária.
Torres – O que você quer dizer com "sectária"? Você quer dizer "ideológica"?
Freire – Ideológica é uma boa palavra. Eu estava, de fato, mais aberto, uma vez que eu não concordava com algumas categorias marxistas. Eu acho que, em relação a isso, Pedagogia do Oprimido tem algo a ver com a Perestroika. É exatamente a possibilidade de negar as descobertas fundamentais de Marx, ou pelo menos algumas delas, que lhe permite então não se tornar objeto das mesmas.
Torres – Você acha que as categorias de dominação e opressão são mais gerais do que a categoria da exploração? Serão elas mais universais?
Freire – Eu acredito que uma implica a outra; quando você domina você explora. O que pode-se dizer é que não pode haver exploração sem dominação e não pode haver dominação que não implique um certo grau de exploração. Isso pode, por exemplo, ser puramente mental, psicológico. Você domina seu filho ou sua filha, por exemplo. Não tem nada a ver com a realidade econômica dele (a). É possível até que você o (a) proíba de crescer economicamente. Durante a adolescência de seu (sua) filho (a), seu domínio sobre a mente e corpo dele (a) é autoritário. Você interdita – para usar uma expressão que minha esposa Nita gosta. Você interdita no corpo consciente dele (a), você é um dominador e você o (a) explora. Mas é a exploração de seu (sua) filho (a) e ela não é
econômica. Trata-se de uma exploração afetiva, por exemplo, é uma exploração de sentimentos. Fundamentalmente você quer alguma coisa dele ou dela. Por exemplo, é possível dizer que você deseja uma espécie e subserviência afetiva. Acredito que quanto mais esclarecermos essas direfentes possibilidades de dominação e exploração – os "o quê" e os "porquês" – melhor compreenderemos os fenômenos.
Agora, no domínio de classe, temos a exploração econômica, ou a discriminação social ou cultural. Uma vez que você domine enquanto classe, do ponto de vista econômico, você necessariamente aceita uma identidade cultural que também envolve o afetivo, os sentimentos e as emoções dos dominados.
Por exemplo, tudo isso tem a ver, embora em termos distintos, com a dominação doméstica – o domínio por vezes do marido sobre a esposa. Em outras palavras, trata-se de uma dominação na qual o marido faz questão de não permitir que a esposa se liberte economicamente, por exemplo. É semelhante ao caso do (a) filho (a). Mas o marido domina a esposa, às vezes por ciúmes, por causa da passividade. No final vemos que o relacionamento de dominação sempre tem uma conotação de posse do dominador sobre o dominado. Isso é o que tornou Marx incontestável em sua referência aos dominados como numa "condição próxima a objetos".
Uma coisa que eu gostava muito e que também era agradável, além do prazer intelectual, era ler as cartas de Marx. Eu sempre dizia a meus alunos "olha, pessoal, vocês deveriam ler os textos mais densos de Marx, mas depois leiam as cartas, porque dessa forma vocês pegam o Marx de pijama". Lá você muitas vezes o vê com tanta vida, irreverente, polêmico, não muito dialógico, mais árduo, e cheio de amor pelo que defendia. Eu não tenho dúvidas de que a ciência é uma ciência que não pode ser detida e que é precisamente porque ela é conhecimento que é exagerada dentro da história. Mas especificamente porque o conhecimento tem historicidade, o que equivale a dizer que o conhecimento está sempre "se transformando e nunca é". Mas eu diria mesmo quando a ciência um dia disser – para alguns especialistas já é o caso, mas, para mim, não – que as contribuições de Marx não fazem mais sentido. Mesmo que isso viesse a acontecer, eu revisitaria suas obras de um modo inteligente, de uma maneira respeitosa, porém não submissa. E eu não tenho dito isso apenas em relação a Marx, mas também em relação a outros filósofos e pensadores com os quais não concordo. Você entende o que quero dizer? A busca não pode ser negada...
Torres – Quando você se refere à busca, você quer dizer a busca pelo conhecimento. Essa busca por conhecimento é baseada na curiosidade, as sementes epistemológicas da ciência?
Freire – Sim, curiosidade. É isso que eu respondi numa de nossas entrevistas quando você perguntou "E quando Paulo Freire morrer, o que ficará como seu legado?", e eu disse: "O legado para mim é fundamental. Não se trata do que eu fiz de um ponto de vista intelectual, e sim o testemunho de minha existência. Deveria-se dizer que Paulo Freire amava intensamente, e queria saber e compreender. Isso significa dizer, sua sede de conhecimento é resultado do fato de que ele sempre foi uma pessoa muito curiosa". Eu acho que é isso que deve ficar. Marx era assim – e há alguns de nós no mundo dos quais poderia dizer-se o mesmo, certo? – porque ele era uma pessoa que , com todos os seus problemas – e acredito que as pessoas são pessoas – exercitava bem sua inteligência. Ele queria saber sobre tudo e é uma pessoa que merece reconhecimento. Assim, ler suas cartas é maravilhoso. Contudo, nunca me esquecerei da raiva que ele tinha de alguns marxistas franceses, ou fascistas, como eu diria hoje. Uma vez ele disse algo assim: "Olha, a única coisa que eu sei é que eu não sou marxista". Isso é um senso extraordinário de radicalismo, de bom senso, da pessoa que se recusa a petrificar-se.
Torres – Que outros exercícios você fez ao escrever Pedagogia do Oprimido? Como você organizou a estrutura do livro, quantos capítulos você escreveu, como você lidou com os problemas das teses principais?
Freire – Eu comecei Pedagogia do Oprimido pelo título. Pedagogia do Oprimido é possivelmente o livro mais didaticamente bem organizado que escrevi. Sua introdução consiste de três ou quatro páginas. Então eu comecei a escrever o primeiro capítulo. Agora, eu preciso dizer uma coisa. Quando comecei, quando decidi que iria trabalhar no livro, eu descobri que grande parte dele estava escrito nas fichas sobre as quais eu falei antes. Assim, eu organizei essas fichas em cima de minha mesa de acordo com os títulos e sempre descobria o seguinte: que entre a ficha número quatro e número cinco –eu numerava todas elas – havia um espaço vazio. Era um vazio que eu precisava preencher. Assim, eu às vezes escrevia dez páginas, e quando terminava, eu colocava a ficha quatro e cinco juntas e elas encaixavam perfeitamente – nada estava faltando. E nesse ponto, eu pegava a ficha número seis e observava a ordem, de forma que foi um processo muito trabalhoso.
Torres – Como você organizava as fichas? Em ordem cronológica?
Freire – Sim, eu as organizava de acordo com o dia em que as escrevia. Mas o que ocorria era o seguinte: às vezes a ficha seis tinha continuidade com a ficha 30.
Torres – Mas você começou com o título Pedagogia do Oprimido, tema que era uma obsessão para você?
Freire – Sim, eu estava obcecado. O tema era obsessivo. Imagine o seguinte – o caráter de obsessão pelo tema era tal que nem mesmo um amigo meu poderia vir a minha casa sem ter que ouvir sobre o assunto. Deixe-me contar uma história. Na véspera do casamento de minha filha mais velha, Madalena, com Francisco Weffort, ele veio me visitar em minha casa e eu comecei, com um pouco de autoridade de um pai, a impor a conversa sobre a relação de opressor e oprimido ao noivo de minha filha. Também percebi que quando um amigo chegava para conversar comigo, ele às vezes trazia o assunto e dizia: "Mas Paulo, você realmente acha que é assim?", e uma pergunta como essa já era o suficiente para me desafiar. Naquela noite, eu estava escrevendo e lembro-me que Madalena até riu, com o sorriso complacente de uma filha, quando disse: "Olha, pai, você está tão envolvido com isso que está desrespeitando seu direito de conversar. Quem quer que venha aqui não pode sair sem levar consigo a pedagogia do oprimido. Meu querido pai, você precisa se conter um pouco". Eu fiquei mais reservado e daquele dia em diante comecei a me controlar mais. Realmente eu tinha ficado obsessivo – e a obsessão em torno do assunto era tal que explica uma certa sequência do meu trabalho.
Torres – Quanto tempo durou essa obsessão?
Freire – Eu escrevi os primeiros três capítulos em 15 dias, e depois escrevi o quarto capítulo em três ou quatro meses. Agora, todo o processo de concepção e escrita levou mais tempo – possivelmente dois anos, de 1966 a 1968, sem incluir as fichas de notas. Eu me lembro que quando fui aos Estados Unidos pela primeira vez, em 1967, encontrei uma grande amiga minha, Carmen Hunter. Ela traduziu Cartas à Guiné Bissau. Carmen foi a primeira tradutora que eu tive nos Estados Unidos e foi minha intérprete durante as conferências que proferi em 1967. Naquela época, eu só sabia dizer "good morning" e "How do you do" em inglês. Aceitei um convite de uma igreja presbiteriana para falar em português com ela traduzindo. Assim, nos encontramos numa salinha da igreja para decidir como eu iria falar sobre isso, isso e aquilo durante a conferência. Naquele momento, com minha obsessão, eu disse: "Olha, eu estou trabalhando muito numa idéia geral. Eu a tenho em minha cabeça e o livro que vou escrever agora irá se chamar Pedagogia do Oprimido". Foi lá que comecei a falar e responder perguntas sobre a pedagogia do oprimido.
Há dois anos, eu estava nos Estados Unidos com Nita, minha esposa, e com um bom amigo meu que também era amigo de minha esposa falecida, Elza. Willian Kennedy era meu chefe no Conselho Mundial de Igrejas. Ele é um excelente intelectual e professor no Seminário da União de Nova Iorque. Ele organizou um jantar para receber Nita, um gesto muito louvável, porque ele e sua esposa eram grandes amigos de Elza. Eles chamaram Carmem Hunter, que acabou sendo a primeira intelectual norte-americana a traduzir um livro como Pedagogia do Oprimido que ainda não havia sido publicado e nem mesmo escrito. Ela deu início ao trabalho traduzindo as idéias iniciais do mesmo. Isso demonstra o estado no qual eu me encontrava. Acredito que quando uma pessoa fica obcecada por um livro, isso é o primeiro sinal de que o livro tem algo de valor.
Torres – O que você quer dizer com "de valor"?
Freire – Bem, ele tem algo para a gente, mas, mais tarde, com o tempo, você começa a descobrir que há algo de valor para outras pessoas também.
Torres – Neste livro você tentou especificamente estudar as relações de opressão dentro da escola?
Freire – Não exclusivamente dentro, mas as relações dentro e fora da escola. Mas o que é de interesse fundamental, acredito, é o que ocorre na escola. É possível encontrar educadores progressitas no Brasil e noutros lugares que negam que processos de conflito de classes ocorrem dentro da escola. E de seu ponto de vista, eles querem que a escola seja simplesmente um espaço e tempo para a constituição do conhecimento através da transmissão sistemática e rigorosa de conteúdo. E assim temos pessoas, inclusive educadores progressistas no Brasil, que defendem o que chamam informalmente de "pedagoria de conteúdo". Para mim, a escola continua sendo um espaço de conflito social. Em outras palavras, a fim de usar termos mais clássicos, eu diria que a luta de classes continua a existir dentro da escola. A questão é saber que posição o educador – que nunca deveria parar de ensinar o conteúdo – assume perante o conflito social que se desenvolveu no mundo e dentro da escola. Minha tese não é que, em nome de minha visão da classe trabalhadora, eu irei politizar as crianças e esquecer de ensiná-las o conteúdo fundamental. Não, de meu ponto de vista é cientificamente impossível fazer
isso. Essa dicotomia de política versus conteúdo não é invariavelmente científica. Ela é politicamente errônea e cientificamente distorcida. Minha tese, portanto, é a de que ensinando o conteúdo necessário no campo da biologia, ou história, ou língua, eu debato, esclareço e elucido a luta de classes na sociedade. Ela está incluída em todo o conteúdo, porque eu aceito a escola como parte dessa luta. A escola não pode estar ausente dessa luta.
Torres – Várias vezes se fez essa pergunta a você, mas é importante discutir suas opiniões sobre o relacionamento entre educação e política, e particularmente sua compreensão da noção de ciência na pesquisa, ensino e práxis educacional.
Freire – Num livro que publiquei há alguns anos, argumentei que, como educador, eu dou muito mais ênfase à compreensão de um método rigoroso de conhecimento. E é aí que falo de método. Eu só falo de método para me referir a isso e não aos chamados métodos pedagógicos e didáticos. Minha grande preocupação é o método enquanto meio de conhecimento. Devemos ainda nos perguntar: saber a favor do que é, portanto, saber contra o quê; saber em prol de quem e saber contra quem. Essas são as perguntas que devemos nos fazer como educadores. Devemos também saber que é sempre a educação que nos leva à confirmação de outro fato óbvio que é a natureza política da educação.
Eu me lembro de uma discussão com uma mulher que trabalhava na Secretaria de Educação comigo quando ela me fez uma pergunta semelhante: "Qual é a situação que permite que isso aconteça? Esse negócio é engraçado. O que é a ciência? A compreensão da ciência não é somente para os positivistas, mas também para os revolucionários. É uma consciência inocente, absolutamente ingênua. Os positivistas acreditam que a ciência é neutra exatamente porque é objetiva. Para mim, ela não é neutra, porque ela é subjetiva-objetiva. Isso significa dizer que toda descoberta científica implica um relacionamento entre subjetividade e objetividade e contradições entre os dois. De outra forma, não haveria descoberta científica. Agora, os positivistas pensam que existe neutralidade na ciência exatamente por causa do caráter objetivo da ciência. Os revolucionários temem que o pensamento científico possa introduzir uma dimensão que irá despolitizar a educação. Isso só é assim do ponto de vista de pessoas absolutamente ingênuas. Não é preciso dar atenção a isso. Por exemplo, algumas pessoas alegam que a pesquisa científica de Emília Ferreiro despolitiza. Eu não a vejo dessa maneira. Pelo contrário, o grau no qual nos apropriamos das investigações psicológicas de Emília, contanto que compreedamos as contribuições de Vygotsky e Piaget, permite que façamos política com mais eficiência.
Sim, eu me preocupo com esse tipo de questionamento. Ele não me enraivece, mas ele realmente me preocupa. Ele me preocupa científica e politicamente. Como você e Gadotti uma vez disseram em seu trabalho, esse tipo de indagação relaciona-se com as questões filosóficas muito antigas que Marx resolveu. Esse tipo de questão nem se aproxima de Hegel. É uma indagação pré-hegeliana, que é a discussão da teoria e da prática. É a discussão entre ciência e senso comum. É uma discussão sobre subjetividade e objetividade, de natureza dialética porém resolvida, embora exista no pensamento de Marx também um bom caminho para certas posições trágicas. Em suma, essa distinção entre política e educação, no final, tem a ver com o basismo. Ela tem a ver com uma posição basista da educação, da política. Uma premissa básica da investigação é perguntar se ela significa uma despolitização ou negação da teoria para introduzir a psicologia cognitiva. Trata-se da negação da teoria, da negação da ciência, e não pode ser feita. Não podemos aceitá-la. Contudo, é trágico quando uma pessoa ingenuamente desenvolve uma linha de investigação e ainda assume a pior e mais autoritária das ideologias, a ideologia assume a pior e mais autoritária das ideologias, a ideologia basista.
Analisando minha própria prática, mesmo a partir do momento em que escrevi Educação como Prática da Liberdade, isso estava claro para mim, porque, para dizer a verdade, eu sabia que estava me envolvendo numa prática política, só que não a assumi como tal. Ao nível crítico, portanto, eu não assumi uma prática que poderia ser considerada como eminentemente política. E como educadores, somos artistas e políticos, mas nunca técnicos.
Como afirmei num pequeno artigo, "a questão do sonho possível tem precisamente a ver com uma educação libertadora, e não com uma educação domesticante". A questão dos sonhos possíveis, repito, tem a ver com uma educação libertadora à medida que é uma prática utópica. Mas utópica não enquanto inatingível; não no sentido de quem fala do impossível; de sonhos impossíveis. Utópica no sentido de que é prática que vive a unidade dialética e dinâmica entre denunciação e anunciação, entre a denúncia de uma sociedade injusta e exploradora e a anunciação do sonho possível de uma sociedade que no mínimo seja menos exploradora, do ponto de vista das grandes massas populares que constituem as classes sociais dominadas.
Torres – O papel do intelectual como professor não pode ser ignorado, a sua obra, poderia-se dizer, serviu para salientar a importância do diálogo como epistemologia, e o comprometimento individual com a mudança social como elemento-chave no treinamento dos professores. Você fala até mesmo de utopia, uma utopia possível que os professores deveriam abraçar. Em vários livros dialógicos publicados nos anos 80, particularmente seu livro com Ira Shor, Uma Pedagogia de Libertação, e com Donaldo Macedo, Alfabetização, você argumenta sobre a importância da filosofia da pedagogia do oprimido. Você poderia aplicar alguns daqueles conceitos ao treinamento de professores numa sociedade como os Estados Unidos, sociedade que, considerando-se suas constantes palestras durante as duas últimas décadas em universidades e organizações não-governamentais, você passou a conhecer e apreciar muito?
Freire – Tentarei colocar em termos simples e começar com a compreensão do que é ensino, e, portanto, a educação e treinamento tanto de educadores como de estudantes. Para mim, o processo de formação de educadores necessariamente implica o ato de ensinar, o qual deveria ser desenvolvido pelo professor, e o ato de aprender, o qual deveria ser desenvolvido por um aprendiz. É necessário esclarecer o que é ensino e o que é aprendizagem. Para mim, ensinar é uma forma ou o ato de conhecer, de forma que o estudante não vá simplesmente agir como aprendiz. Em outras palavras, ensinar é uma forma que o professor ou educador possui de trazer evidências para o estudante sobre o que é conhecer, de forma que o estudante também venha a conhecer em vez de simplesmente aprender. Por esse motivo, o processo de aprendizagem implica a aprendizagem do objeto que deve ser aprendido. Essa preocupação não tem nada a ver com o ensino exclusivo de habilidades de alfabetização. Essa preocupação estabelece o ato de ensinar e o ato de aprender como momentos fundamentais no processo geral de conhecimento, processo do qual o educador, de um lado, e o educando, de outro, fazem parte. E esse processo implica uma instância subjetiva. É impossível que uma pessoa, não sendo o sujeito de sua própria curiosidade, possa realmente compreender o objeto de seu conhecimento.
Agora, quando você me pergunta: "Paulo, como você vê sua proposta em relação ao nível do Primeiro Mundo e não apenas em relação ao treinamento em alfabetização", eu digo que trata-se de uma questão da teoria do conhecimento que eu estabeleci de forma pedagógica em Pedagogia do Oprimido. Portanto, ela tem a ver com uma opção democrática. Se um educador no Canadá ou nos Estados Unidos, que não é nem autoritário nem tradicional, compreende que sua função de ensinar demanda a tarefa crítica de conhecer por parte de seus educandos, então não há como não aplicar isso também no Canadá ou nos Estados Unidos.
Torres – Você acha que é possível desenvolver a pedagogia do oprimido com uma pedagogia racional e ao mesmo tempo radical no contexto político de uma potência hegemônica como os Estados Unidos?
Freire – Essa é uma pergunta muito importante. A prática educacional é parte da superestrutura de qualquer sociedade. Exatamente por isso a prática educacional, a despeito de sua importância fundamental nos processos sócio-históricos de transformação das sociedades, não é por si mesma a chave para a transformação, mesmo que seja fundamental. Dialeticamente, a educação não é a chave para a transformação, mas a transformação é por si mesma educacional.
A questão que você levantou também me parece ser fundada em outro problema, que é o problema das opções e decisões políticas. Em primeiro lugar, com respeito a uma pedagogia democrática, não há motivos para que ela não possa ser aplicada simplesmente porque estamos lidando com o primeiro mundo. Em segundo lugar, o que é necessário é aprofundar o aspecto democrático dessa pedagogia que eu estou defendendo. Esse aprofundamento e alargamento do horizonte da prática democrática irá necessariamente envolver as opções políticas e ideológicas dos grupos sociais que realizam essa pedagogia. Assim, evidentemente, uma elite de poder não irá gostar de situar e praticar uma forma de expressão pedagógica que aumente as contradições sociais que revelam o poder das classes elitistas. Seria ingênuo achar que uma elite de poder revelaria a si própria através de uma processo pedagógico que, no final, operaria contra ela mesma.
Torres – Correto. E esse é o motivo pelo qual o professor aparece também como profeta em seu trabalho e não apenas como intelectual engajado. Com o passar dos anos, eu tenho apreciado e estou muito impressionado com sua análise de profeta como pedagogo, como aquele que anuncia e denuncia ao mesmo tempo. Você se lembra do que você disse num pequeno trabalho publicado por Carlos Rodrigues Brandão há mais de uma década? Você jogou estas palavras ao vento como um desafio aos pedagogos críticos e acho que elas se prestam muito bem para finalizar esta entrevista:
"Os profetas não são homens ou mulheres desgrenhados e dilapidados; quer sejam homens barbudos, quer sejam mulheres com longos cabelos, imundos, vestidos com farrapos, com a bengala do pastor na mão, os profetas são aqueles homens e mulheres que mergulham de tal forma nas águas de sua cultura e de sua história, da cultura e da história de seu povo, dos dominados entre eles, que conhecem seu aqui e seu agora, e assim podem antever o seu amanhã, o qual eles mais compreendem do que preveem”
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